Bons Dias do Ex. Senador Machado de Assis


  
[Café da Manhã Inglês]

BONS DIAS!


Eu, se fosse gatuno, recolhia-me à casa, abria mão de vício tão hediondo, e ia estudar o hipnotismo. Uma vez amestrado, saía à rua com um ofício honesto, e passava o resto dos meus dias comendo tranqüilamente sem remorsos nem cadeia. 

Foi o que fiz agora sem ser gatuno; gastei dias metido no estudo desta ciência nova. Tivesse a menor inclinação para ratoneiro, e nunca mais iria às algibeiras dos outros, aos quintais, às vitrines, nem ao famoso conto do vigário. Faria estudos práticos da ciência. 

Dava, por exemplo, com vivos, e lesto, dizia comigo:- Este é o Visconde de Figueiredo. Metia-o por sugestão no primeiro corredor, ele mesmo fechava a porta, por sugestão, e eu dizia-lhe, como Gassner, que empregava o latim nas suas aplicações hipnóticas:

- Veniat agitatio brachiorum. 

O visconde agitava os braços. Eu em seguida bradava-lhe: 

-Dê-me V. Ex.a as notas que tiver aí no bolso, o relógio, os botões de ouro e qualquer outra prenda de estimação. 

S. Ex.a desfazia-se de tudo paulatinamente: eu ia recebendo devagar; guardando tudo, dizia-lhe com persuasão e força: 

- Agora mando que se esqueça de tudo, que passe alguns minutos sem saber onde está, que confunda esta rua com outra; e só daqui a uma hora vá almoçar no restaurant do costume, à cabeceira da mesma mesa, com seus habituais amigos.

Depois, à maneira do mesmo velho Gassner, fechava a experiência em latim: 

-Redeat ad se! 

S. Ex.a tornava a si; mas já eu ia na rua, tranqüilo, enquanto ele tinha de gastar algum tempo, explicando-se, sem consegui-lo. 

Seriam os meus primeiros estudos práticos; mas imagine-se o que poderia sair de tais estréias. Casas de penhores, ourives, joalherias. Subia ainda; ia aos tribunais ganhar causas, ia às câmaras legislativas obter votos, ia ao governo, ia a toda parte. De cada negócio (e nisto poria o maior apuro científico), compunha uma longa e minuciosa memória, expondo as observações feitas em cada paciente, a maior ou menor docilidade, o tempo, os fenômenos de toda a espécie; e por minha morte deixaria esses escritos ao Estado. 

Por exemplo, este caso das meninas envenenadas de Niterói - ...Estudaria aquilo com amor; primeiro o menino que aviou a receita. Indagaria bem dele se era menino ou boticário. Ao saber que era só menino, mas que com cinco anos e a graça de Deus, esperava chegar a boticário, e, talvez, a médico da roça, - mostrar-lhe-ia que a fortuna protege sempre os nobres esforços do homem; e assim também que, para salvar mil criaturas, é preciso ter matado cinqüenta, pelo menos. Em seguida, tendo lido que o vidro do remédio fora mandado esconder por um facultativo, achá-lo-ia, antes da polícia, por meio hipnótico, e este era o meu negócio. Exposto o vidro, na Rua do Ouvidor, a dois tostões por pessoa... E verdade que tudo poderia já estar esquecido, ou por causa do assassinato do Catete, ou até por nada. 

Tudo feito, chegaria a morrer um dia, e mui provavelmente São Pedro, chaveiro do céu, não me abriria as portas por mais que lhe dissesse que os meus atos eram puras experiências científicas. Contar-lhe-ia as minhas virtudes; ele abanaria a cabeça. Pois aí mesmo aplicaria o novo processo.

-Veniat agitatio brachioram! 

São Pedro, mestre dos mestres na língua eclesiástica, obedeceria prontamente à minha intimação hipnótica, e agitaria os braços. Mas como, então, não via nada, eu passaria para o lado de dentro; e logo que lhe bradasse de dentro: -Redeat ad se, ele acordaria e me perdoaria em nome do Senhor, desde que transpusera o limiar do céu.
Esta é a diferença dos dois mistérios póstumos: quem entra no inferno perde as esperanças, quem entra no céu conserva-as integralmente. Servate ogni speranza, o voi ch'entrate!


Boas noites.

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