Ora (direis) ouvir Machado de Assis.
30 de outubro de 1892, A Semana de Machado de Assis.
Tempos do papa! tempos dos cardeais! Não falo do papa católico, nem dos cardeais da santa Igreja Romana, mas do nosso papa e dos nossos cardeais. F. Otaviano, então jornalista, foi quem achou aquelas designações para o Senador Eusébio e o estado-maior do Partido Conservador. Era eu pouco mais que menino...
Fica entendido que, quando eu falar de fatos ou pessoas antigas, estava sempre na infância, se é que seria nascido. Não me façam mais idoso do que sou. E depois, o que é idade? Há dias, um distinto nonagenário apertava-me a mão com força e contava-me as vivas impressões que lhe deixara a obra de Bryce acerca dos Estados Unidos; acabava de lê-la, — dois grossos volumes, como sabem. E despediu-se de mim, e lá se foi a andar seguro e lépido. Realmente, os anos nada valem por si mesmos. A questão é saber agüentá-los, escová-los bem, todos os dias, para tirar a poeira da estrada, trazê-los lavados com água de higiene e sabão de filosofia.
Repito, era pouco mais que um menino, mas já admirava aquele escritor fino e sóbrio, destro no seu ofício. A atual mocidade não conheceu Otaviano; viu apenas um homem avelhantado e enfraquecido pela doença, com um resto pálido daquele riso que Voltaire lhe mandou do outro mundo. Nem resto, uma sombra de resto, talvez uma simples reminiscência deixada no cérebro das pessoas que o conheceram entre trinta e quarenta anos.
Um dia, um domingo, havia eleições, como hoje. Papa e cardeais tinham o poder nas mãos, e, sendo o regímen de dois graus, entraram eles próprios nas chapas de eleitores, que eram escolhidos pelos votantes. Os liberais resolveram lutar com os conservadores, apresentaram chapas suas e os desbarataram. O pontífice, com todos os membros do consistório, mal puderam sair suplentes. E Otaviano, fértil em metáforas, chamou-lhes esquifes. Mais um esquife, dizia ele no Correio Mercantil, durante a apuração dos votos. Luta de energias, luta de motejos. Rocha, jornalista conservador, ria causticamente do lencinho branco de Teófilo Otoni, o célebre lenço com que este conduzia a multidão, de paróquia em paróquia, aclamando e aclamado. A multidão seguia, alegre, tumultuosa, levada por sedução, por um instinto vago, por efeito da palavra, — um pouquinho por ofício. Não me lembra bem se houve alguma urna quebrada; é possível que sim. Hoje mesmo as urnas não são de bronze. Não vou ao ponto de afirmar que não as houve pejadas. Que é a política senão obra de homens? Crescei e multiplicai-vos.
Hoje, domingo não há a mesma multidão, o eleitorado é restrito; mas podia e devia haver mais calor. Trata-se não menos de que eleger o primeiro conselho municipal do Distrito Federal, que é ainda e será a capital verdadeira e histórica do Brasil. Não é eleição que apaixone, concordo; não há paixões puramente políticas. Nem paixões são coisas que se encomendem, como partidos não são coisas que se evoquem. Mas (permitam-me esta velha banalidade) há sempre a paixão do bem e do interesse público. Eia, animai-vos um pouco, se não é tarde; mas, se é tarde, guardai-vos para a primeira eleição que vier. Contanto que não quebreis urnas, nem as fecundeis — a conselho meu, — agitai-vos, meus caros eleitores, agitai-vos um tanto mais.
Por hoje, leitor amigo, vai tranqüilamente dar o teu voto. Vai anda, vai escolher os intendentes que devem representar-nos e defender os interesses comuns da nossa cidade. Eu, se não estiver meio adoentado, como estou, não deixarei de levar a minha cédula. Não leias mais ainda, porque é bem possível que eu nada mais escreva, ou pouco. Vai votar; o teu futuro está nos joelhos dos deuses, e assim também o da tua cidade; mas por que não os ajudarás com as mãos?
Outra coisa que está nos joelhos dos deuses é saber se a terceira prorrogação que o Congresso Nacional resolveu decretar é a última e definitiva. Pode haver quarta e quinta. Daqui a censurar o Congresso é um passo, e passo curto; mas eu prefiro ir à Constituinte, que é o mesmo Congresso avant la lettre. Por que diabo fixou a Constituinte, em quatro meses a sessão anual legislativa, isto é, o mesmo prazo da Constituição de 1824? Devia atender que outro é o tempo e outro o regímen.
Felizmente, li esta semana que vai haver uma revisão de Constituição no ano próximo. Boa ocasião para emendar esse ponto, e ainda outros, se os há, e creio que há. Nem faltará quem proponha o governo parlamentar. Dado que esta última idéia passe, é preciso ter já de encomenda uma casaca, um par de colarinhos, uma gravata branca, uma pequena mala com alocuções brilhantes e anódinas, para as grandes festas oficiais, — e um Carnot, mas um Carnot autêntico, que vista e profira todas aquelas coisas sem significação política. Salvo se arranjarmos um meio de combinar os presidentes e os ministros responsáveis, um Congresso que mande um ministério seu ao presidente, para cumprir e não cumprir as ordens opostas de ambos. Enfim, esperemos. O futuro está nos joelhos dos deuses.
Mas não me faças ir adiante, leitor amado. Adeus, vai votar. Escolhe a tua intendência e ficarás com o direito de gritar contra ela. Adeus.
Fonte do texto : http://www.cronicas.uerj.br/home/cronicas/machado/rio_de_janeiro/ano1892/30out92.htm (acesso dia 06 de setembro de 2012 )
Comentários